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Sexualidades, por Raizel Rechtman, #10

Na nossa sociedade heteronormativa definimos os heterossexuais como os normais, os homossexuais são os anormais e os bissexuais os descarados. Mas até aí tudo bem, já estamos acostumados e confortáveis com essas definições. Tem pessoas que gostam de outras do sexo oposto, tem aquelas que optam pelo mesmo sexo e as que topam os dois. O problema é quando essas caixinhas não suportam mais a diversidade do ser humano. As Trans foram as primeiras a escancarar o diferente e reivindicar reconhecimento. A sigla LGBT que tentava englobar todo os espectros da sexualidade não dá mais conta, o céu é o limite. E com essa imensidão de definições é fácil se perder. A ideia inicial era escrever um dicionário das sexualidades, mas estudando e mergulhando nesse mundo, percebi que a discussão teórica do que é a sexualidade e suas possibilidades é muito mais importante do que uma lista de conceitos e significados. Então, para tentar esclarecer algumas dúvidas e ajudar a compreensão dessa sexualidade moderna tão fluida, podemos separar em 3 aspectos: sexo, gênero e orientação sexual.

O Sexo se refere ao biológico. Nascemos com determinados cromossomos e, consequentemente, num determinado corpo. Ele é, basicamente, definido pela combinação dos nossos cromossomos com a nossa genitália. Assim, podemos ser machos, fêmeas ou intersexuais. Sendo os intersexuais aqueles o sexo pode se manifestar de formas diferentes, seja por conta de as gônadas apresentarem características intermediárias entre os dois sexos, ou o aparelho genital não condizer com o tipo cromossômico.

O Gênero é a forma como cada um, individualmente, se identifica e expressa a sua sexualidade e é historicamente, socialmente e culturalmente construído. Podemos ser Cisgênero quando nos identificamos com o nosso sexo ou Transgênero quando não nos identificamos com o nosso sexo. Por exemplo, uma mulher que nasceu fêmea e se expressa socialmente como mulher é cisgênero, já um homem que nasceu macho, porém não se identifica com o gênero masculino é considerado transgênero. Além disso, existe a não-binaridade de gênero que é quando a pessoa não se identifica nem se comporta estritamente com o feminino nem com o masculino.  

Já a Orientação Sexual se refere à direção para qual se inclina o desejo sexual, qual gênero nos atraímos. Poderíamos achar que essa é fácil, temos o hetero, homo e bi. #SQN. Temos uma nova classificação de orientação sexual que procura ser menos taxativa ao não colocar em comparação o gênero da pessoa com o “gênero-alvo”. A primeira divisão dessa classificação diferencia os monossexuais que têm atração por apenas um gênero, dos bissexuais, que não se restringe a gostar de ambos os gêneros, mas pela sexualidade não binária, que possibilita gostar de gêneros além dos binários feminino e masculino. Na monossexualidade temos androssexuais (que sentem atração sexual por homens), ginessexuais (que sentem atração sexual por mulheres) e assexuais (que não possui atração sexual).

O que concluímos disso tudo? Que tem é coisa no mundo! Brinks. Realmente, são muitas as possibilidades de sexualidade, sei que não cheguei nem perto de esgotá-las nesse texto. Independente disso, o que acho mais importante é entendermos que as definições de identidade sexual e de gênero não podem ser colocadas em caixinhas para nosso bel-prazer. As caixinhas servem para limitar e engessar identidades, o ideal é que fujamos dos binarismos homem - mulher e homo – hetero e, principalmente, que dêmos a voz à quem o é. Quem define o que somos, somos nós mesmos.

Quer entender sobre as possíveis sexualidades? Entra no site Wiki Identidades: 

Quer entender como eles se comunicam? Entra no Aurélia, o primeiro dicionário gay do Brasil: 

 

Guia Musical da Fossa, Por Raizel Rechtman, #9

Adoramos a fossa. Não, não adoramos sofrer, mas adoramos o que a compõe. Somos apreciadoras do whisky no fim de tarde, do domingo melancólico e, principalmente, das músicas que refletem o mal do amor. Eu e Thais somos da fossa, vivida ou não. Pode parecer estranho, mas é comum em jantares em casa um momento músicas de fossa. Na estante da vitrola um disco coletânea clássico: “O Fino da Fossa”. E, como diria meu amigo Guillermo, não há como negar que os melhores sambas foram feitos na dor de amor.  

NEGAÇÃO

Me dê motivo – Tim Maia

Quem nunca ficou mal, sabia que a relação já tinha acabado, mas mesmo assim não conseguia ir embora? Essa é a música do Tim Maia. Ele tenta admitir que não dá mais, mas ainda precisa que o outro lhe prove que é isso mesmo. Quem fala tanto que “está indo embora, não faz sentido” e ainda pede motivo?

O FIM

Sonhos – Caetano Veloso

Uma das minhas músicas preferidas da vida, fala de um término maduro. Tem o sofrimento de “quando a poesia realmente fez folia em minha vida” e “você veio me falar dessa paixão inesperada por outra pessoa” (tadinho do Caê!), mas ele admite as coisas boas da relação “você me ensinou milhões de coisas” e vê um futuro para si “amanhã será um novo dia, certamente eu vou ser mais feliz”. Não sabe ele as próximas fases que o esperam.

AUGE DA FOSSA

As canções que você fez pra mim – Roberto Carlos

A letra é do Roberto, mas cantada por Maria Bethânia não tem igual. O disco dela que tem o mesmo nome da música é INTEIRO maravilhoso. A música em si já começa num ritmo de fossa, tipo um blues que te envolve, mas quando ela começa a cantar é um pé no peito. Na letra o lamento daquilo que viveu com o outro “ficaram as canções e você não ficou” e a dificuldade em seguir em frente “pois sem você meu mundo é diferente, minha alegria é triste”. Essa é o período de dor absoluta, física, daquelas que achamos que não é possível viver.

DESESPERO

Mentiras – Adriana Calcanhoto

Ela já começa dizendo: “nada ficou no lugar”. É isso! Acabou e o vazio está ali. Nessa fase entram as dúvidas, a raiva, o desespero, vontade de vingança. “Eu vou derramar nos seus planos o resto da minha alegria”. Mas é tudo ainda muito amor, “que é pra ver se você volta, que é pra ver se você vem, que é pra ver se você olha pra mim”.

DOR DE COTOVELO

Olho nos olhos – Chico Buarque

Essa é uma música de tentativa de saída da fossa. Aquela fase de negação do real, a pessoa acha que está bem “se pega cantando sem mais nem porque” #sqn. O Chico está na fossa, senão não precisava cantar pra outra pessoa “como suporta me ver tão feliz”. Dor de cotovelo rolando pesado ainda.

SAINDO DA FOSSA

Anos dourados – Tom Jobim

Bolero né, gente? Quer compasso mais envolvente do que esse? Nessa música a gente já vive um início de superação, o auge da fossa já passou. Mas ainda tem as recaídas “ainda te quero, te quero”, quem nunca mandou mensagem para o ex que atire a primeira pedra, o Tom liga ofegante e diz confusões no gravador. Mas, apesar de já estarmos melhor, quando rola um encontro ainda é tenso, “é desconcertante rever o grande amor”.

SUPERAÇÃO

Saudade fez um samba - João Gilberto

Ufa! Já numa fase melhor, a pessoa assume que “A dor é minha, em mim doeu, a culpa é sua, o samba é meu”. Com esse belo samba, dá pra começar a ver uma luz no fim do túnel. Ir vivendo com as cicatrizes da relação, levar essas tatuagens consigo.  

 

Feminismo na web, Por Thais Lancman, #5

O feminismo hoje é indissociável da Internet e das redes sociais. Textos e textões, páginas sendo criadas, formando uma rede de apoio e informação múltipla e aprofundada, campanhas publicitárias machistas sendo criticadas, e o resultado disso, ao contrário do que muitos dizem, não é um movimento que começa e termina no online: temos mulheres brigando por mais espaços em seus locais de trabalho, saindo de relacionamentos abusivos, as discussões de gênero chegando ao bar, ao jantar de família, às escolas.

A Internet está muito à frente da mídia tradicional em termos de representatividade e empoderamento feminino. Na Internet as gordas estão felizes, lindas e pegadoras, as negras estão honrando sua cultura e trazendo suas causas para o centro, mulheres estão sendo elogiadas por não usarem maquiagem, por consumirem menos, se divertirem mais. Tudo isso é para ser celebrado e muito. Quando vejo que meninas de colegial se organizando me dá uma emoção que não cabe em mim, porque eu fui aprender a ser feminista muito mais tarde, e teria sido incrível se eu e as minhas amigas não tivéssemos batido tanta cabeça até aprender sobre sororidade e empoderamento, palavras que meninas de 16 anos hoje talvez possam até falar melhor do que eu, essa idosa de 28.

Ao mesmo tempo, o feminismo online, principalmente pelo que acompanho no Twitter e no Facebook, tem seus vícios, não muito diferentes dos males que acometem a Internet brasileira em geral, mas especialmente problemáticos em um ambiente virtual que se dispõe a lutar por igualdade, respeito, liberdade.

O que mais me incomoda ao acompanhar polêmicas que envolvem o feminismo, da última campanha machista de cerveja ao disco da Rihanna, é a memenização do debate. Isso chega a vídeos da Jout Jout, desabafos com o trânsito, tudo! Se o post ganha repercussão, lá vem “seje menas”, “apaga que dá tempo”, “melhore”. Respostas tão automáticas quanto o joinha que você aperta por acidente no aplicativo do Messenger. Não acho que o meme seja diametralmente oposto ao aprofundamento, entendo seu papel em difundir, entreter, mas ele cria um ambiente viciado que deixa todos um pouco mais surdos, e com um tipo de sarcasmo passivo-agressivo que na minha cabeça não entra.

Na mesma linha, entendo que as hashtags sejam uma ferramenta poderosa de conscientização e a tração de boa parte do tal feminismo online. Mas quando ele se torna regra, ou ainda um discurso pronto, a relação beira com o doentio, do ter que participar, deixar seu relato para fazer parte. E aí as pessoas passam a pedir que isso seja feito, não para acrescentar algo à discussão, mas para simplesmente agregar mais do mesmo a um corpo pesado que que se retroalimenta. Em um universo em que as redes sociais não são apenas o centro das nossas relações, mas também de informação, isso me incomoda. Ficamos quase que lendo textos e depoimentos em loop, procurando neles o que já sabemos, quase que um afago de “boa garota” na cabeça.

Esse ambiente pode quentinho para umas, sufocante para outras. Para algumas pessoas que não são tão inseridas, ele pode parecer pouco convidativo. E, o pior, para quem está tentando entender e, acima de tudo, participar, eventualmente o lado mais cruel da Internet se manifesta: linchamentos virtuais, carteiradas, todo tipo de negatividade. Fico chateada quando vejo meninas novas que falaram alguma besteira e têm tuítes copiados e compartilhados, ou mesmo alguém que, antes de se manifestar, já pede perdão ou benção, como se tivesse medo das respostas. Isso não é legal, ainda mais somado ao já citado meme, essa onda doida de babaquice e piadinha é para mim uma coisa um pouco confusa e perturbadora. Temos que dar o tempo para o aprendizado de cada uma.

Nossas relações, na Internet e fora dela, precisam ser sadias, construtivas, precisam nos fortalecer. Como um todo, estamos aprendendo a ser feministas e estamos aprendendo a viver na Internet. Só não podemos esquecer que existe um outro mundo fora dela e pessoas reais atrás de cada perfil, muito mais complexas do que uma foto engraçadinha ou um comentário de três palavras.

 

Me despedindo das agendas e de quem eu era quando fazia agendas, Por Thais Lancman, #4

Escrevi em agendas quase que diariamente entre os anos 2000 e 2005. Algumas eram feinhas, depois tive agendas a Tkts e da Tribo, e até um caderno em que escrevi as datas. A agenda devia ser escrita com caneta colorida, o que era um problema para uma canhota como eu, que faz a mão de mata-borrão impreterivelmente. Outro fato importante era colar ingressos, fotos do aniversariante do dia, pulseirinhas, a tampa da champagne do réveillon e o que mais desse. Chegar em dezembro e agenda não fechar de tanta tralha era um sinal de vitória.

O problema de escrever uma agenda quando se é adolescente é se deparar com o fato de que em muitos dias, nada de útil acontece. E ali está você com uma página inteira a preencher. Até hoje uma amiga ri de mim porque eu escrevi “meus tios voltaram de viagem e trouxeram coisas muito legais, tipo lápis!”. Uma página vazia significava nenhum gatinho, nenhuma aventura, nenhum drama. E eu desenvolvi uma solução para esse problema, ou então uma meia solução: eu inventava amores, passeios, baladas. Mas não era só pelo prazer de inventar, não estava construindo nenhuma Pasárgada. Eu inventava na esperança de que, no futuro, ao reler essas lembranças forjadas, eu acreditasse que meus verões no Guarujá tivessem sido tão intensos quanto eu narrara. Mesmo assim, são muitos dias com um Tédio escrito bem grande ou algo do tipo.

É óbvio que não deu certo. Pior do que isso, se eu leio as minhas agendas agora, tanto as memórias reais quanto as fictícias me dão um constrangimento absurdo, eu só quero apagar tudo isso da minha cabeça! É normal pirar assim, sendo que eu nem sou mais aquela adolescente tosca (pleonasmo), não deveria ser capaz de rir disso tudo? Ainda não estou pronta, ao mesmo tempo que tenho um certo carinho por aquela menina que só queria se divertir, e por isso não jogo as agendas fora. E tenho pena dela, que passou anos falando sobre fazer dieta, sobre querer ser bonita e pegável. Acho bonitinha a ingenuidade, também, do que era o “pior dia da vida” em 2002 ou um “porre histórico” em 2004, basicamente escrever coisas engraçadas no guardanapo do bar e andar por Perdizes. Segundo o método KonMari de organização, temos que guardar apenas aquilo que nos traz felicidade. Ela, inclusive, é bem rigorosa com fotos e esse tipo de objeto, afirmando que eles pertencem ao passado e têm que ir. As agendas atualmente não me trazem felicidade eu falo muito sério quando afirmo que eu fico agoniada de pensar nelas.

As minhas agendas obviamente cumpriram seu papel na época. Escrevendo nelas eu conclui que existem amizades que fazem mal e outras que fazem bem, que eu tinha medo de crescer, e muitas outras coisas.  Eu poderia encerrar esse texto atribuindo ao besteirol das minhas agendas o fato de hoje eu escrever ficção, mas na verdade não consigo fazer essa relação. Mas sim, elas cumpriram o papel de me fazer querer viver mais, chegando ao ponto de não ter o que escrever, mas de não ter tempo para escrever! Não foi uma decisão racional parar de fazer uma agenda bonitinha e tal, acho que eu abandonei uma pela metade no ano de vestibular e outra no primeiro ano de faculdade, quando as experiências e descobertas já não combinavam mais com páginas mega decoradas.

O ponto em que as minhas agendas falham, assim mesmo no presente, é em me libertar da ressaca moral. Fiz esse texto e mesmo assim não consigo separar o que está escrito e a quem escreve agora. Mas agora prefiro assumir o fracasso delas, seguir com a Marie Kondo e também buscar o método Raizel de me curar desse mal que faz a gente se contorcer por conta de algo que aconteceu meses ou anos atrás. Raizel disse: um dia eu acordei com uma baita ressaca moral e disse foda-se. E é isso que eu vou fazer. Quando essa Ammora tiver saído, as agendas já estarão no lixo. Quem sabe eu não começo um diário.

 

 

RETROSPECTIVA 2015, Por Raizel Rechtman, #3

Para a última edição da Ammora do ano eu fiquei com a incumbência de fazer uma retrospectiva de 2015. Até que tentei, fiz uma lista de acontecimentos do ano, mas saiu uma coisa tosca e desleixada. Então decidi escrever mais livremente sem me prender aos marcos específicos do ano e ao som de Regina let´s go (girl power).

Pra mim o lema desse ano (e pessoal também) é o munda mundão. Um ano em que as discussões sobre machismo tomaram conta! Foi machismo pra cá, feminismo pra lá, empoderamento em todo lugar! Se o feminismo fosse o mar esse ano teria rolado uma mega tsunami. Essa grande onda inundou tudo, alcançando espaços jamais antes tocados, além de destruir algumas estruturas. As águas vieram cheias de empoderamento feminino. Esse ano presenciamos um “bum” de coletivos feministas, manifestações contra projetos de leis que atingiam às mulheres, eventos para discussão sobre o tema, textões no facebook, discursos de artistas famosas e hashtags, muitas hashtags.

Um dos primeiros passos no processo de mudança é a tomada de consciência, saber o que é o machismo de maneira geral e nos pequenos detalhes. Concomitantemente, faz-se importante a abertura da discussão do que pode e não pode em relação ao corpo da mulher. Engraçado termos essa discussão coletiva (entre homens e mulheres) sobre o que pode e não pode em relação ao corpo da mulher, mas sim, na nossa sociedade machista a mulher participar dessa discussão e homens se disponibilizarem a dialogar é considerado avanço.

O feminismo virou tema de bar. Amigos conversando sobre como podem “chegar numa mina” sem ser agressivo ou desrespeitoso e pedindo ajuda para suas amigas mulheres em como reconhecer o seu machismo. O feminismo virou tema da mídia. Artistas como a Emma Watson, Patricia Arquette, Jennifer Lawrence e Viola Davis, fizeram discursos incríveis sobre feminismo em diferentes espaços. O feminismo virou tema de videoclipe. Quem não se arrepia ao assistir “Till it happens to you” da Lady Gaga que trata da questão do abuso sexual nas universidades? O feminismo virou tema das redes sociais. As hashtags primeiro assédio e meu amigo secreto dominaram o facebook e escancararam a realidade machista da nossa sociedade em que as mulheres são submetidas. E o feminismo também saiu do discurso e virou ação social.    

Um foco de atenção é que a palavra feminismo ainda assusta mais do que dá orgulho para muitas mulheres e claro que isso não é sem motivo. Isso é mais um mecanismo da nossa sociedade machista que, ao desencorajar as mulheres de se identificarem com a causa feminista, enfraquece o movimento. Felizmente temos muitas mulheres que não têm medo de se assumirem feministas. É comum ouvir o discurso de que todos são iguais e que não precisamos mais do feminismo. Ainda precisamos sim do feminismo e muito! As mulheres ainda ganham menos, andam por menos espaços públicos, são estupradas, agredidas, assassinadas, desrespeitadas e desfavorecidas, pelo único motivo de serem mulheres.

Temos muito o que progredir, sempre! Mas o mundo está mudando. Não vou dizer que essa foi a maior tsunami de todas, pois o movimento feminista tem um passado de grandes conquistas, mas acho que estamos de parabéns pelos avanços. Agora está tudo molhado e abalado, porém a água volta para o mar, então temos que aproveitar a chance de reconstruir o devastado de outra forma, nova, melhor. Que venha 2016!

 

 

O Tabu da Menstruação, por Thais Lancman, #2

Um sábio homem chamado Dinho Ouro Preto nos perguntou uma vez: o que você faz quando ninguém te vê fazendo? Eu me pergunto a mesma coisa, em relação a todos os nossos nojos. Talvez eu seja muito caminhoneira, mas acho que muito do nojo exclamado por aí é, sim, teatro. E esse assunto vem a calhar quando se fala de menstruação, nos dois aspectos em que o tabu se manifesta mais alto. O você com você mesmo e o você com os outros.

A menstruação é vista como algo nojento, acho que as leituras dessa edição da Ammora podem ter causado algum desconforto até. Poucas mulheres falam tranquilamente quando estão menstruadas e como, ou exibem um absorvente na mão no caminho pro banheiro, por exemplo. Aquela cena de uma menina passando um ob para a outra como se fosse droga acho que é um clássico que muita gente já vivenciou. O período em que se está menstruada, então, é comparável a uma diarreia ou qualquer outra disfunção com um aspecto meio escatológico. Mas homens várias vezes anunciam suas disfunções, com mais ou menos detalhes, enquanto mulheres permanecem sendo aquelas imaculadas incolores inodoras.

Estou aqui lutando pelo direito de falar de piriri em público? Não, obrigada e amigos poderiam me poupar desse assunto, por acaso. Só estou ressaltando a diferença e elaborando uma teoria que o padrão de beleza que falamos sempre é também um padrão higiênico de expectativas inalcançáveis. Pensei agora de leve nos sabonetes e desodorantes íntimos. E quebrar esse padrão é importante, porque poderia nos beneficiar.

O meu ponto é que eu acho que boa parte do nojo com a menstruação é, sim, teatro. Acho que sozinhas as pessoas piram menos com uma barata na sala e também com a própria menstruação. Daí o sucesso do copinho. Se as meninas superarem a conversa cheia de não me toques que é muito mais uma cena, vão descobrir que uau, era muito barulho por nada.

O copinho, ou coletor menstrual, talvez seja o disparador do braço Ame Sua Menstruação do movimento feminista. É a versão mais acessível do parto natural, uma vez que inclui qualquer menina que já tenha ficado menstruada, todo mês. Para além do romantismo, o copinho é sim uma mão na roda: você está com ele o tempo todo, quase nunca precisa trocá-lo em público, é sustentável evita correrias até a farmácia. Quando eu morei fora, levei absorventes para todo o período que estaria longe do Brasil. Dinheiro, espaço na mala, trampo. Os contras do copinho: lavar e ferver todo mês dá preguiça sim, e eu demorei pra me adaptar sim. Não tivesse sido carinho e não coincidisse com a minha noia de quanto lixo a gente produz por dia, eu teria desistido. Pra ser sincera, desisti por um tempo e voltei. E eu e o copinho estamos de bem agora. Fico pensando se na transição do absorvente de pano para o descartável houve tanta manifestação de nojinho. E o de pano está tendo seu huge comeback, parece.

Em um ponto eu dou razão para as copinho lovers: a descoberta do quanto se menstrua por mês. Em volume. É fascinante mesmo. Por que ninguém nunca nos disse isso? É muito menos do que a gente imagina.

O segundo ponto do nojo teatralizado com menstruação é o sexo. Pesquisa rápida do instituto Datathais aponta que todo mundo faz ou já fez sexo durante a menstruação. Se não faz é porque ou rola um desconforto com o corpo todo nesses dias que tira o tesão, ou porque a logística dá preguiça. Por logística, entenda procurar uma toalha ou alguma coisa pra proteger o lençol, ou até mesmo trocar o lençol depois, enfim, trampo. Das que responderam ouié para sexo na menstruação, uma entrevistada disse “adoro!” e outra foi menos entusiasmada, mas ambas concordaram que nos dias mais intensos não rola, nem mesmo no chuveiro. Todas as entrevistadas são hétero, e nenhuma mencionou que o parceiro tem nojo e tal, o que foi meu espanto. Na hora do vamo ver, parece que muitas pessoas sabem medir bem que menstruação não é nenhum grande drama, seja no dilema do copinho ou para fim de transas.

A vida seria bem mais fácil se a menstruação não fosse tabu. E acho que no íntimo de cada um ela nem é, só precisamos por a serenidade esperada de um evento mensal que acontece, aconteceu ou acontecerá com metade da população para fora.

 

Amizade de Menina, por Raizel Rechtman, #1

Para aproveitar que é a primeira edição da Ammora e o tema é amizade de meninas, vou escrever sobre a minha amizade com Thais. Conheço Thais há 10 anos, talvez um pouco mais. Somos aquele clichê de melhores amigas, já dividimos quarto, desafetos em comum, viajamos muitas vezes juntas e temos até mesmo uma família musical imaginária (Alanis, nossa mãe solteira, Zeca Baleiro e Marisa Monte, nossos tios e os nossos queridos Los Hermanos).

Nossa amizade sempre foi regada à vinho, crítica à sociedade, discussões sobre gênero e busca de ferramentas para mudar o mundo. Sempre considerei nossa amizade irada! Sentia que tinha alguma coisa de diferente e lembro de ter ficado muito feliz ao receber o “elogio” de que eu e Thais tínhamos uma amizade de homem. Naquele momento tudo fez sentido pra mim, pensava: “é isso! Nossa amizade é especial porque nos relacionamos como homens e não como mulheres falsas e superficiais!”. Naquela época, eu acreditava na igualdade de gênero, mas não percebia que essa igualdade era a mulher (inferior) se igualar ao homem (superior) e eu sempre tentava me igualar a eles. Naquela época eu não era feminista.

Hoje me questiono, por que a amizade de homem é tão valorizada e a de mulher depreciada? Hipótese: porque na nossa sociedade machista tudo que vem de mulheres é pior! A amizade entre mulheres é sempre representada como fútil, cheia de inveja e intriga. Essa própria representação em novelas, filmes, séries, propagandas, influencia na forma em que as mulheres pensam, agem e se relacionam umas com as outras. Crescemos achando que o normal é falarmos mal pelas costas e achado que nossos amigos homens, entre eles, não fazem isso, e vivem uma amizade plena. E me constitui nessa sociedade, considerando o mesmo e achando “elogio” ter uma amizade de homem.

O que eu não entendia na época, e acho que só fui entender quando comecei a escrever esse texto, é que a amizade não tem gênero. Pra escrever esse texto comecei a me questionar sobre o que é tão bom na amizade de meninas e o que eu percebi é que não é nada restrito a meninas! Aprendemos com Descartes a colocar tudo em caixinhas e a caixinha do gênero é um padrão social. Por isso é tão necessária a desconstrução dos estereótipos e quebra de paradigmas sobre o que é de mulher e de homem.

Independentemente de gênero, o que deve ser valorizado, mas que encontramos com mais frequencia nas amizades de meninas, é a possibilidade de sermos confidentes, falar sobre nossos sentimentos e angústias, acolher e sermos acolhidas e, óbvio, muita diversão, porque, né?, é amizade! Pode ser novidade para alguns de vocês (espero que não seja), mas as mulheres quando se juntam não falam só de roupa ou de relacionamentos! Elas também falam besteira, discutem política, pornografia, gifs de gatinhos e tudo mais que estiverem afim.   

A amizade é uma relação entre pessoas, homens e mulheres com características humanas e não reduzidas a gênero. Porém, é importante destacar que vivemos em uma sociedade em que há coisas bem demarcadas de menino e menina, em que somos expostos e bombardeados por esses estereótipos desde que nascemos e, como consequência, produzimos pessoas estereotipadas e reprodutoras de mais estereótipos. Por isso a relevância do tema amizade de menina, refletir e valorizar características ditas femininas é uma ação em direção da mudança, da igualdade. Aí uma coisa que aprendi com minha amizade de menina com Thais (e com Pérola, mãe dela): aprendi a ser feminista!

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