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Capítulo 1

O que é que eu vou fazer com essa tal liberdade? Com essa mensagem, Elena intimou as amigas a darem dicas via Whatsapp de como lidar com o desemprego. A primeira coisa era saber se ela estava bem e sim, Elena estava felicíssima em sair da empresa que a contratara ainda estagiária. Entre altos e baixos, ela sabia que não tinha mais o que fazer ali. Na noite anterior, inclusive, ela saiu para comemorar. Reuniu os amigos no C.. do Padre, nenhum colega de trabalho, para falar de fazer o que quiser.

No bar, pediram vinho e pasteizinhos. Elena saiu com Nina para fumar. Comentaram sobre as outras pessoas que estavam no bar. A maioria não gostou de Elena quando a conheceu, mas foram mudando de ideia. Eu entendo, disse Nina, as pessoas não gostarem de você de cara. Eu não entendo, disse Elena. Eu sou ótima. Nina mandou essa frase para Elena por Whatsapp naquela hora mesmo para que ela não esquecesse disso no dia seguinte.

Já de manhã, e Elena acordou cedo e super energizada com todas as possibilidades nas mãos, ela tinha que lidar com as burocracias. A primeira era o exame demissional a ser feito em uma clínica esquisita na Rua Sete de Abril. Conhecia aquele prédio, deixou lá uma câmera Pentax no conserto e nunca buscou. Todos ali, inclusive o médico que atendeu Elena, eram bolivianos. O doutor mediu sua pressão e batimentos cardíacos, não fez muito mais do que isso. Perguntou se ela estava nervosa, o coração batia forte.

 – Ansiosa.

– Vem muita mudança pela frente, não é?

Elena saiu do consultório achando aquilo engraçado, o tom profético do médico, ele devia dizer isso para todo mundo que faz exame demissional. Tinha muita coisa para fazer antes de se envolver em um ar místico de mudança. Exames, renovação da carteira de motorista, levar pôsteres para serem emoldurados. Encerrar uma conta no HSBC. Montar um armário-cápsula e doar uma tonelada de roupas. Ok, mato isso ainda essa semana, e depois?

Checou o Whatsapp: Gata, aproveita que está relax e vem conhecer mi trabajo nuevo.

Pronto, Elena já tinha programa para hoje. A Débora tinha uma loja de roupas infantis estilosas, aberta há uns meses. Combinaram de se ver à tarde. Antes, Elena almoçou um PF que sempre comentavam na Internet que era isso e aquilo e, bom, não era nada absurdo. Foi até uma doceria e comprou mini bombas de chocolate.

Débora tinha uma sócia, que conciliava os vestidinhos e macacões com o emprego antigo em um escritório de arquitetura. A loja atendia clientes com hora marcada nos dias de semana, aos sábados e domingos faziam eventos, apresentações de artistas circenses e afins. Ficava em um prédio charmoso sem elevador, tinha tijolos aparentes, lustres metálicos, cadeiras Eiffel, portas amarelas, industrial, artsy, crafty, étnico. Débora a recebeu com um “êêêêê” e, depois de um tour rápido, ofereceu para fumarem o resto de um beck que estava no cinzeiro da varanda.

Débora sempre diz que está trabalhando demais agora que tem a própria empresa, na verdade também dizia que trabalhava demais antes, em tudo o que fez, mas ninguém sabe muito como. Débora sabe se vender. Aparentemente melhor do que vende bodys de banda para recém-nascidos. Se alguém a deixa vender seu peixe, ela vai lá e vende. É uma coisa da sua formação em arquitetura, pensa Elena, apresenta maquete, croqui, o que mais for falando “aqui é a quadra, aqui é a piscina, aqui é a sala de estar”, falando de tudo como se já fosse. Mas Débora agora queria saber de Elena, quais os planos, enquanto elas tomavam um ar na varanda e puxavam o final do beck.

Elena não fazia ideia. Parecia que desde quando conseguiu aquele estágio não tinha mais pensado em nada, na pergunta O que eu quero ser quando crescer. Largou um curso de fotografia no primeiro módulo de seis, quando ligaram para ela dizendo que tinha conseguido a vaga. Por isso não precisou da Pentax e não a tirou da assistência técnica. Era um curso bem picareta então aprendeu a fazer fotogramas, usar os equipamentos do laboratório para imprimir no papel fotográfico a sombra de objetos. Fazia imagens preto e branco de clips, papel picado, de seu próprio cabelo. Depois pensou que poderia desenhar a sombra de qualquer coisa com carvão, giz de cera. Se apaixonou por sombras. Lembrou dos clowns que seguem as pessoas na rua, eles não controlam as sombras, eles se tornam o próprio corpo escuro que vira o que estiver na sua frente.

Elena acreditava que, com os impulsos certos, poderia fazer algo incrível. Ser a grande sombra, de pessoas, plantas, objetos. Construir sombras e sombras das sombras. Viver disso, bastava não se distrair com outras coisas. Não apenas ser artista de rua, mas outra coisa. Uma presença. Isso poderia ser até útil. Então ela falou para Débora que chegando em casa ia disparar o currículo, falar com colegas de faculdade, coisas corriqueiras nada sombrísticas. Mudaram de assunto para memes e links do Buzzfeed que as duas tinham visto, elas tinham uma identificação enorme em matéria de gifs de gatinhos. Até que Elena lembrou das mini bombas.

Sim um pouco derretidas, sim com gosto de chocolate barato, mas naquele momento elas estavam deliciosas. Adoro tomar café chapada, Débora completou, e elas riram muito daquilo. Manda um Ristretto. E, com um pouco de chocolate no canto da boa, Elena falou:

– Sabe Síndrome do Impostor?

– Sei, claro, respondeu Débora. Sua cara, ter isso.

Elena ficou muito espantada. Duplamente desmascarada. Não era só uma farsa, mas era uma farsa que tinha medo de ser farsa e até isso a Polícia da Fraude (ver: A Arte de Pedir, Amanda Palmer) sabia. Mas como ela podia achar que uma amiga era, na verdade, parte da força policial? Isso era cruel e não combinava em nada com a relação entre elas.

Não, não era isso.

– Elena? Elena, pra onde você foi?

Depois da risada histérica que tiveram com os segundos em que a Elena parecia ter travado feito um computador velho, Elena virou o Nespresso como um shot, limpou o chocolate da boca (mal sabia ela que tinha derrubado um pouco no vestido também), e disparou.

– Acho que o meu negócio não é que eu faço as coisas com medo de descobrirem que sou uma farsa, porque na verdade eu nem faço muita coisa. Eu tenho essa ideia, lembra de quando a gente ia pra praia e eu ficava vendo os sombras seguindo as pessoas perto da feira hippie? É tipo isso, só que maior. Todo mundo adora isso e eu acho que eu sei por quê. Então não acho que seja questão de a polícia da fraude me desmascarar com esse lance meio palhaça, e sim com as coisas que eu não faço nesse sentido. Tipo, está todo mundo esperando a hora que eu vou finalmente falar que é isso que eu quero fazer, porque eu não sirvo pra outras coisas.

– Gatona, você serve pra o que você quiser, mas tem que fazer o que você quer.

Esse conselho não tinha nada a ver, mas era útil mesmo assim, pensou Elena.

– Já te mostrei a nossa nova coleção? Débora voltou quase correndo, trazendo consigo uma arara de roupas minúsculas com estampas orientais. Eram lindas, pareciam papel de origami. Elena ficou esperando que fossem engraçadinhas, de algum tecido diferente. Mas eles eram apenas de um bom-gosto extremo. Extremo.

– Amiga, vou pra casa, deixar você trabalhar aqui e atualizar o meu CV.

– Mentira, você vai ver Netflix.

No caminho, e Elena foi andando, ela estava desmascarada em níveis que nem sabia digerir. Estava frustrada consigo mesma por não conseguir ser sincera com uma amiga como Débora. Na pior, ela tinha muito o que aprender com ela. Tinha mesmo. Pelo menos, ela era ótima, tanto que começou ali mesmo, a imitar as pessoas discretamente, e também os postes, os sacos de lixo. Até que, ao parar em frente a uma caçamba para imaginar se seria possível converter seu corpo ínfimo naquela massa de metal e entulho, sentiu alguém cutucar as suas costas.

– Hola.

Era o médico boliviano.

 

 

Capítulo 2

– Não chegamos a nos apresentar no consultório. Soy Pedro.

Elena ficou ali parada, pensando que merda, tenho um stalker, que trabalheira, que medo. Olhou em volta, a rua estava movimentada, menos mal. O médico boliviano a chamou para beber alguma coisa. Ela disse não, aí o medo bateu mesmo.

– Cosa de quinze minutos no máximo. Cosa boa.

A curiosidade de Elena não deixou ela ir embora. Na pior ela saía correndo. Foram andando em um silêncio que só foi interrompido pelos más allá de Pedro. Chegaram em um boteco de bolivianos, na verdade um boteco como qualquer outro mas que tocava música quechua. No fundo uma mulher cantava. Crianças vendiam uns boizinhos de plástico. Além da cerveja de garrafa, drinks extremamente elaborados saíam de um balcão minúsculo no fundo, que parecia um outro local que tinha sido anexado ao boteco. Normal.

El mejor bloody mary de la ciudad chegou à mesa pelas mãos de Pedro, ele mesmo foi buscar. Elena estava pensando em perguntar o que ele queria, quando ele começou a falar. Tudo aquilo começara ainda no exame demissional, ele tinha achado curioso que ela parecia elétrica com a ideia da demissão. Muitas pessoas aparentam felicidade por deixar um emprego, mas a dela era diferente, era radioativa. Vai Elena, conta dos seus planos, ela pensou, mas não falou nada. Só falou que estava animada, mudar é bom. Tonta, se repreendeu depois.

– É de gente assim que a gente precisa, Elena. Por que você usa óculos?

– Oi?

– Os óculos, você precisa deles mesmo?

– Sim, sou míope.

– Bueno, então a primeira cosa é irmos até a casa de mi tia, para jantar. Conversamos um poquito com ela, você vai ver que asado excelente ela faz. Aí ela vê os seus olhos, dependendo como for ela já opera e você nunca mais vai usar óculos na vida.

– Obrigada, mas é que...bom, eu até gosto dos óculos.

– Mas essa é uma cirurgia caríssima, e ela te faz assim, depois do jantar.

– Você é maluco. E além do mais, se é tão fácil assim por que você está de óculos?

– Bueno, mira.

Pedro deu seus óculos a Elena. As lentes eram de plástico. Ela achou aquilo ridículo, lembrou de uma menina que ela conheceu uma vez que fazia a mesma coisa. A diferença é que tinham dezessete anos na época.

Elena acelerou no bloody mary, queria ir embora logo. Mas o drink estava realmente ótimo, ela queria voltar ali outra vez. Quando Pedro foi até o balcão de novo, ela pensou em sair à francesa, mas ele voltou com mais dois copos e disposto a falar de negócios.

– Preciso de gente como usted na minha empresa de detetives particulares.

E aí ele apresentou o plano. Não era o clássico homem de chapéu que segue a suposta mulher adúltera, era um ramo muito variado. E também incluia captação. Ou seja, ouvir conversar aqui e ali como possíveis clientes, depois abordá-los de maneira elegante e ela podia até ganhar uma porcentagem sobre o caso.

– Eu não sou muito boa em falar com as pessoas.

– Então fale pouco.

– Eu não sou muito boa em juntar pistas, investigar.

– Você vai aprender.

Ouvindo a boliviana cantando uma música chorosa, as criancinhas brincando no chão do bar, Elena pensou que não tinha nada a perder. Se ela queria ser sombra, esse podia ser um começo.

– Posso captar clientes vestida de sombra?

– Esse é o espírito.

Apertaram as mãos e brindaram com o terceiro bloody mary.

 

Capítulo 3

Às nove horas da manhã Elena já estava a postos em uma praça movimentada, blusa listrada e suspensórios, afoita e de ressaca. Quando viu que passaram quinze minutos e ela ainda não tinha seguido ninguém nem feito nenhuma graça, começou a ficar ansiosa. Meia hora, quarenta e cinco minutos, ela se levantou e andou na direção de duas amigas. Elas se assustaram e riram. Ninguém em volta deu bola.

Nem os pregadores de Bíblia estavam na praça àquela hora. Nos planos de Elena ela ficaria ali até as quatro da tarde, depois sairia com amigas, dia normal. Não tinha pensado que uma rotina livre significa, talvez, fazer tudo ao contrário. Ou não fazer nada. Só que Elena era uma desempregada com dois empregos, sombra e detetive, não podia esquecer o job do boliviano, a meta, deadline.

O boliviano não tinha falado nada de quantos clientes ela tinha que conseguir por mês, nem por semana. Na verdade, ela não lembrava muito da conversa a partir de determinado ponto. Estava por conta própria. Sentou do lado de uma escultura metálica em um dos cantos da praça, ouvindo freiras falando com moradores de rua. Eles não seriam clientes em potencial. Mas ali do lado, duas pessoas conversavam, um menino magrinho e uma menina baixinha:

– Então ele disse que ia até aquele boteco e sumiu, fiquei aqui parado por um tempão, até acabar a bateria do meu celular e ele não voltou.

– Nossa amigo, e você tem alguma pista?

– Perguntei sobre ele no boteco, alguém disse que ele tinha descido a rua, eu cheguei a andar por aqueles lados, dei uma olhada nos cortiços, mas a chance de achar alguma coisa era mínima. Desisti.

Aquilo parecia interessante. Elena puxou um bloquinho meio de costas para a dupla e começou a anotar uma descrição dos dois, as informações que ouvira. Clientes em potencial, era o título. Ao mesmo tempo, ela começava a atrair olhares na praça. Olha mãe, a palhaça! Vai ter show de mágica? Cada coisa que a gente vê aqui.

Quando os dois levantaram, Elena teve a brilhante ideia de dar a volta na escultura e abordá-los de frente. Os amigos se assustaram de leve e riram. Elena também não se segurou, pediu desculpas, mas disse que tinha ouvido um pouco da conversa.

– Nossa amigo – disse a menina baixinha – para um detetive particular você fala muito alto.

Elena se surpreendeu. Então ele também era...

– Sim, um colombiano me contratou.

E ficaram ali se olhando, curiosos. Os três faziam a mesma coisa. Ficavam na praça ouvindo conversas, procurando possíveis clientes. Elena decidiu ligar para Pedro e ele não atendeu. Com os outros dois, agora tinham nome: Henri e Julieta, eles iriam atrás de um mistério. Quem tinha os contratado e quantos mais estivessem ali na praça.

 

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